- Não.
- É normal, porque nunca vos contei nada sobre isso.
- Parece abatido, professor?
O professor Strutermutter olhou para o automóvel, mirando o tablier por detrás dos vidros baços do pó da mina, mas
- Não. Enfim. – É só porque dá algum trabalho de explicar... e também é muito complicado. Sim, huum, muito complicado...
- Mas este é o motivo da nossa visita aqui? – Perguntou Miguelti, ainda sentado – saber quem é o Tigre Azul? Não era esta galeria secreta? Quem é que pôs isto aqui, professor?
- Não sei quem é que pôs aqui isto, mas isto tem tudo a ver com o Tigre Azul.
- Não estou a gostar do que nos meteu, professor! – Disse Vivelti, lívido de repente – quer dizer que há um tigre escondido nesta mina à solta, e nós estamos aqui à procura dele?
O professor suspirou – ... Não será propriamente um tigre…
- Então é o quê? – Perguntou Miguelti, sereno, levantando-se.
O professor ficou em silêncio.
- Não sei. – Disse, finalmente - Ou podia ter sido um tigre. Mas uma coisa é certa – levantou-se.
Os dois rapazes olharam para ele, Miguelti levantando a cabeça, Vivelti encostado a uma das paredes, alternando entre o professor e a abertura na parede, talvez à espera de ouvir um rugido a qualquer momento – um monstro carnívoro pintado por homens destemidos, deixado à solta dentro de uma mina abandonada.
- Sabe-se que o Tigre azul já foi humano.
- Perdão…
- O Tigre Azul – o que é? Nem eu sei. É – um mistério, se quiserem. Uma incógnita. Uma anomalia incompreendida naquilo que devia ser a existência. Certas pessoas ouvem falar dele e procuram-no. Eu ouvi falar dele, e estou convicto da sua existência. …É simples.
- Já foi humano? – Interrompeu-o Miguelti – não estou a perceber. E porque é nunca nos falou disso? Fala-nos de quase tudo. Há quanto tempo estava a pensar em trazer-nos para aqui? Há quanto tempo descobriu esta mina?
- Até nos falou daquela vez que teve uma experiência homossexual (pela curiosidade científica, como fez bem em lembrar-nos) depois da guerra civil.
- Faz parte do Caderno Púrpura – O professor começou a levantar-se e a inspeccionar o carro – e falando em guerra civil... vocês lembram-se, meus dois bons rapazes aventureiros, das histórias que eu contei sobre a guerra civil americana?
- Aquela dos índios! – Disse Miguelti.
- Aquela do forte! – Disse Vivelti.
- Aquela em que se meteram numa escaramuça com tropas inimigas e foi a primeira vez que o professor pôde usar a sua famosa pistola a vapor...!
- A guerra Civil foi um período fértil em histórias, sim... – O professor punha as mãos nas portas do carro – (o manípulo deve ser obviamente para abrir...), mas há uma particular história que não vos contei.
- Acerca do Tigre Azul...?
- Quando houve a guerra – disse o professor, em tom soturno, remirando os vidros, pondo a cabeça dentro do carro – os soldados eram arrancados das suas cidades e terras, e iam combater para o meio do nosso grandioso país. Vocês sabem o que me aconteceu. Lembrem-se que tinha vinte anos... vinte e poucos anos... enfim. Eu ouvi falar do Tigre Azul pela primeira vez nessa altura.
- Então, como?
- Histórias de guerra. – Disse o professor – Supostamente, combateu na guerra civil. Ou disseram que combateu na Guerra Civil… Do Tigre Azul, só ainda o ouvi saído da boca de quatro pessoas nesta minha vida, e foi porque foi vasta… a minha vida, digo. Quatro, quatro pessoas.
- E nunca o viu?
- Não. E nem sei se era o verdadeiro Tigre Azul. Ou se era um... ou… – de um moribundo junto a uma estrada no meio do Utah, a um índio velho tresloucado pelos céus, que dizia estarem vermelhos de sangue da morte que tinha ocorrido nas pradarias... De um viajante que procurava uma cidade perdida na América do Sul, e de
- Professor, desculpe não estou a perceber – Miguelti começava a pôr-se na sua forma preferida de estar, numa ligeira indignação sabichona misturada com um olhar de reprovação pelo tolinho a quem interpelava ou corrigia, mesmo que neste caso se tratasse do Professor Strutermutter – Então está a dizer que o que andamos à procura são os restos mortais de um combatente da guerra civil? Aqui nesta mina? E, e que esse tipo combateu na guerra civil? Mistura de compota ácida, professor.
- Ideias e subtilezas: o Tigre Azul é isso e um pouco mais no que toca a um conceito.
- Não sei se estou a perceber... – Vivelti.
- Desenhado em vasos gregos e paredes egípcias... será?
- Não estamos bem a conseguir apanhar a nova que se está a produzir nos seus pensamentos, professor.
- Miguelti, precisamente, tu – estamos em 1908. Ainda nunca foi descoberta uma nova ou uma supernova. Tal como este automóvel. Tem de ser um automóvel, mas não parece deste tempo. E só fará sentido dizendo que veio do futuro, e não do passado.
- Mas este automóvel, olhando para a camada de terra que envolvia o pano que o protegia, está aqui há anos. Está a dizer que foi, aqui, deixado no futuro, para voltar atrás no tempo, até ser descoberto por nós, nesta mina, em 1908?
- De qualquer modo – Miguelti, abalado – não me parece que a influência do Tigre Azul se estenda até tão atrás no tempo como o professor disse!
E Vivelti: - Mas sem dúvida que se mantém e talvez transcenda essa quarta dimensão, como aquele jovem alemão referiu no trabalho que nos mostrou, porque parece vir do “futuro” como o entendemos, se este carro vem mesmo...
- Larga as aspas, vejo-as na forma como entoas a tua frase –
- O Miguelti tem razão – disse o Professor – Este carro é a prova de que o Tigre Azul está nesta mina, que finalmente – levantou-se – eu, Voltan Strutermutter, vou ser o primeiro a apanhá-lo, a descobrir o que ele é!
- Certo, mas desde quando é que ele começou a existir? – Miguelti.
- Relatos e documentos, bem como folclore e percepção daquilo que possamos entender como magia levam a crer que as suas origens mais remotas situam-se na mesma altura do suposto aparecimento de Arakuine.
- Arakuine? – Miguelti.
- Analisemos o carro – sugeriu o Professor.
O castanho deixava transparecer o bordô na superfície – Acha que ele ainda funciona?, Vivelti. – Mas o Tigre Azul está no presente, ou faz parte de alguma lenda, e como é que é possível, se ainda existe no futuro, e antes de nós, ha, – Miguelti. O professor Strutermutter entrou no carro, analisou-o de alto a baixo, deixou que os cheiros inscritos nas profundezas dos estofos lhe chegassem ao nariz, com as mãos suaves sentiu o material dos bancos como agradável ao toque, nem áspero nem macio, a roda entendeu como o volante, o travão de mão pensou ser perigoso, o tablier não tinha compartimentos secretos, e subitamente a mina estremeceu, Miguelti gritou, Vivelti ficou mudo, mas ambos saltaram pela fenda aberta com as suas picaretas, ambos sentiram o desabamento de terra provocado pela destruição da parede, ambos ficaram cortados um do outro, e o professor, dentro da sala, com ar para apenas mais 4,23 horas, dentro de um automóvel abandonado no futuro que, rodando de tempo e de vida, e de conceito, foi parar ao passado, a uma era onde ainda não se tinham inventado as suas chaves, olhou em redor, decidiu não se importar, e, feliz, dando o primeiro mas importante passo para a loucura, continuou a analisar o carro, enquanto Miguelti e Vivelti, um de cada lado do mesmo corredor, ou em galerias diferentes da mesma mina, ou exactamente no mesmo sítio mas em intervalos de tempo diferentes para quem os observava, neste caso eles mesmo, foram deixados sozinhos, sem nenhuma hipótese de retrocederem, a encontrarem outra saída. Se existisse.
Miguelti, parte 4
quinta-feira, 22 de abril de 2010
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